quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

"O último dos injustos" (2013), Lanzmann


"1975. Em Roma, Claude Lanzmann filma Benjamin Murmelstein, o último Presidente do Conselho Judeu do gueto de Theresienstadt, o único que sobreviveu à Guerra. Rabino em Viena, Murmelstein, depois da anexação da Áustria pela Alemanha em 1938, lutou com unhas e dentes com Eichmann, semana após semana, durante sete anos, conseguindo fazer com 121 mil judeus emigrassem e evitando a liquidação do gueto. 2012. Claude Lanzmann com 87 anos, sem mascarar a passagem do tempo, mas mostrando a permanência dos lugares, recupera estas entrevistas em Roma, regressando a Theresienstadt, a cidade “dada aos judeus por Hitler”, gueto modelo, gueto-mentira eleito por Adolf Eichmann para enganar o mundo." (citado em http://cinema.sapo.pt/filme/le-dernier-des-injustes)




O documentário, de quase 4 horas de duração, se torna um pouco cansativo em alguns momentos pelo excesso de detalhes específicos do Holocausto, convertendo o filme mais em um documento histórico do que em um produto de entretenimento cinematográfico. Mas isso não desmerece a última obra do diretor. 

A temática do filme nos lembra o ganhador do Oscar "Sob a névoa da guerra" (2003), de Errol Morris. O documentário apresenta uma longa entrevista com Robert McNamara, ex-secretário de defesa dos Estados Unidos, aos 85 anos de idade. A entrevista trata sobretudo do envolvimento de McNamara durante a Segunda Guerra Mundial e na Guerra do Vietnam. McNamara foi indiretamente responsável pela morte de milhares de pessoas. Assim como em "O último dos injustos", entramos em contato com o ponto de vista de figuras estratégicas de poder em período de guerras e que foram crucificadas pela opinião pública, mas tanto Lanzmann quanto Morris nos levam a reconsiderar suas atitudes. 

Voltando ao documentário agora em questão, é interessante se perguntar: por que Lanzmann não inseriu esse material nas quase 10 horas de duração de Shoah? De fato essas entrevistas resultaram em outro filme, mas por que tardaram tanto em chegar às salas de cine? Segundo Lanzmann, "sabia que era o depositário de algo único, mas recuava perante as dificuldades da construção de um filme como este. Foi preciso muito tempo para aceitar a evidência que não tinha o direito de guardar tudo isto em mim", explica o cineasta".(citado em http://www.festival-cannes.fr/pt/theDailyArticle/60131.html)
Me pergunto se existe algo nas entrevistas que fizeram o diretor não gostar ou duvidar do precioso material que tinha nas mãos... Acabo percebendo que, para mim, o mais interessante em “O último dos injustos” é a capacidade de compreensão e o excesso de empatia que o diretor demonstra pelo entrevistado ao longo do filme e, ousando nos meus pensamentos, pode ser umas das razões pelo abandono do material gravado...


No começo vejo Lanzmann mais provocador, pergunta por que Murmelstein aceita o papel de “embelezador do gueto”, afinal sabemos que boa parte da força e do “êxito” do Regime Nazista se deve à publicidade e, de certa forma, Murmelstein contribuiu para manutenção desse "gueto de mentiras", criado para ludibriar os judeus. Enquanto Murmelstein se defende sagazmente das “acusações” propostas, por que Lanzmann não rebate mais incisivamente? Seria simples ele dizer que apesar do esforço de Murmelstein em manter vivas as pessoas do gueto, ele contribuiu indiscutivelmente para matança de muito mais judeus, mesmo ele não tendo consciência disso na época…Seria carrasco demais dizer isso? 
Minha conclusão é que é fundamental entender que existe os dois lados da história e Lanzmann escuta, é um excelente ouvinte, permite ao entrevistado expor seu ponto de vista, mesmo aparentemente tendo ido entrevistá-lo sabendo da quantidade de judeus que desaprovam sua atitude. Essa sabedoria e humanidade de Lanzmann como entrevistador é a bela surpresa desse filme. 








segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Cruzamento estético da representação documental da execução humana. (Parte 2: Conclusão)


“La estrategia “mixta” de elementos de la realidad y de puesta en escena del docudrama surgió de la necesidad de recurrir a una reescenificación, a veces con actores profesionales, ante la dificuldad de “conseguir metraje auténtico en ciertos escenarios reales, dada la carencia de material ligero y el conseguinte grado de disrupción de las actividades pro-fílmicas que podía causar el rodaje.”[1]
Trata-se de três documentários trabalhando o passado e o representando. Como diz Antonio Weinrichter, “reconstrucción, reescenificación, reinterpretación: todos los términos que empriezan por el prefijo “re-“ son anatema por lo que tienen de vuelta a un momento anterior al presente, para re-stituirlo.” [2]
No entanto, conforme coloca Breschand, é preciso refletir sobre o tipo de representação que esses três diretores optaram por fazer para assim, quem sabe, se converterem em “bons” ou “maus” historiadores.
“Desde el momento en que no hay evidencias, se plantea la cuestión del tipo de representación que se da de la realidad y, para ser más exactos, de la forma mediante la cual la realidad accede a lo visible. Al tomar la vía del documental, los cineastas se convertirán en historiadores del presente.”[3]  
O diretor francês Claude Lanzmann, em seu documentário “Shoah” (1985), optou por trabalhar a história do genocídio nazista sem usar material de arquivo. Ele se baseou apenas em entrevistas e visitas aos locais do Holocausto, alcançando um filme que ultrapassa as nove horas de duração. “Reconstruir es fabricar archivos”, comenta Lanzmann criticando a reconstruções hollywoodianas de Auschiwitz. “De manera que el archivo – se trate del mentiroso bien (Spilberg) o mal (Faurisson) intencionado – no se diferenciará de su propria falsificación.”[4]
            Georges Didi-Hubermann compara “Shoah”, de Lanzmann a “Histoire(s) du cinéma”, de Godard e cita: “son dos estéticas diferentes las que aquí están en juego, dos formas de montaje; pero también dos éticas de la relación creada, en estos dos filmes, entre imagen e história”.[5] O mesmo podemos dizer dos três fragmentos escolhidos para este trabalho. “La polaridad estética se expresa, desde entonces – vía la ética de la mirada (…)”[6]
            Analisando “la mirada” dos diretores escolhidos para esse trabalho, nos guiamos por Jacques Aumont: “O quadro desemprenha, em graus bem diferentes, dependendo dos filmes, um papel muito importante na composição da imagem (...) Alguns filmes, (...) manifestam uma preocupação com o equilíbrio e a expressividade da composição no quadro que nada fica a dever à da pintura.”[7]

Esse cuidado com o quadro e, consequentemente, com o conteúdo abordado podemos notar mais claramente no documentário “S21”, de Rithy Panh. Na sequência escolhida para este trabalho, ele usa uma câmera na mão, provavelmente operada por ele nesse momento e, durante um plano sequência, o executor conta como se dava o assassinato das vítimas. Vemos apenas um corte disfarçado na sequência. A câmera se mantém em plano médio, derivando a uma poça de lama e acompanhando o movimento do personagem que narra. Não há teatro, diversão ou sadismo. O assunto é tratado seriamente e sobriamente.

        Já no fragmento escolhido de “The act of killing”, o diretor Joshua Oppenheimer trabalha de uma forma totalmente diferente a representação do crime. Ele usa um plano aberto, enquadra o corpo inteiro dos personagens. Vemos os executores vestidos tipicamente de gângster, uma mesa convertida em “arma do crime” e também os objetos que estão no fundo da sala. O foco estava nos personagens vestidos à caráter e nos absurdos que contavam. Ao final, uma panorâmica dos executores enquanto cantam simulando o momento do crime.

            No fragmento de reconstituição de “Queridíssimos verdugos”, Basílio Patino trabalha um quadro bem aberto. O ambiente é uma espécie de salão de bar, com enormes barricas pintadas com temas de touradas espanholas ao fundo. Essa locação se repete várias vezes no filme, foi um dos cenários de conversas entre dois dos verdugos. Vemos à direita do quando uma mesa com bebidas. Os dois personagens, que parecem bêbados, explicam a cena tecnicamente ao centro da imagem, entram também alguns inserts ilustrativos durante a sequência.

Analisamos o enquadramento desses fragmentos, mas e o “fora de quadro” dessas sequências? Os personagens estão representando a execução das vítimas para quem? Por mais que os diretores queiram “desaparecer” nesses filmes, nós, os espectadores, sentimos suas presenças.
No filme de Patino, por exemplo, um dos personagens distraidamente olha para câmera algumas vezes, como quem espera a próxima orientação. Os inserts utilizados por Patino sugerem que houve corte na cena, tiram a fluidez da narrativa e percebemos o diretor espanhol editando e, naturalmente, dirigindo o filme.
Em “S21” também houve um corte no plano sequência, mas passa quase despercebido. Na representação escolhida do documentário de Rithy Panh há um verdadeiro “fora de campo” quando o diretor fica mostrando a poça de lama onde caiam as vítimas. A escuridão total, o medo, uma presença quase fantasmagórica parece rodear a cena. A representação fílmica em “S21” é trabalhada na tentativa de ocultar absolutamente a percepção da equipe de produção, assim como nos filmes de ficção.
Nunca ouvimos a voz do diretor e os personagens nunca olham para câmera. Dessa forma, conseguimos esquecer os bastidores e sentir o “fora de campo”, esse espaço invisível, como algo que agrega conteúdo ao momento, um imaginário que, neste caso, nos traz sensações como medo, aflição e vazio. Isso é diferente nos outros dois fragmentos.
Em “The act of killing” o que está fora do quadro, os bastidores, aparecem muito mais. Trata-se de um documentário de making of, então percebemos a equipe todo o tempo, inclusive muitas vezes ela aparece fisicamente ao longo do documentário.
“Para saber hay que imaginarse”, como diz Didi-Huberman. Ao vermos essas sequências só nos resta imaginar como pode ter sido a realidade. São apenas imagens, ou se converteram em história? “(…) Debemos contemplarlas, asumirlas, tratar de contarlas. Pese a todo, imágenes: pese a nuestra propria incapacidad para saber mirarlas tal y como merecerían, pese a nuestro proprio mundo atiborrado, casi asfixiado, de mercancía imaginaria.”[8]
            Sim, mercadoria imaginária. A sociedade de hoje consome imagens para entretenimento, mas e quando o assunto não é alegre? A violência, a guerra, os crimes estão espetacularizados na mídia, começando pelo jornalismo e alcançando esplendor estético na representação cinematográfica. E isso podemos ver claramente em “The act of killing”. “La humanidad (...) se ha convertido ahora en espetáculo de sí misma. Su auto-alienación ha alcanzado un grado que le permite vivir su propria destrucción como un goce estético de primer orden .”[9]
Refletir sobre estes três fragmentos de documentários nos faz também imaginar quem é o público que recebe estes conteúdos, como diz Olivier Burgelin, “para que los mensajes puedan circular sobre el mercado cultural, es preciso que entren en los circuitos de una cierta acción social. Es necesario que sean solicitados, que los individuos o los grupos actúen, de una forma u otra, para obtenerlos (…) Notemos aquí la importancia del concecpto acción con vistas, en particular, a la demanda.” [10]  
Sem demanda não há produção. Nós, espectadores da “sociedade do espetáculo” de Guy Debord, somos público alvo, audiência, consumidor. E, entrar em contato com nossa história através do cinema existe desde sua invenção. “La vida entera de las sociedades en las que imperan las condiciones de producción modernas se anuncia como una inmensa acumulación de espetáculos. Todo lo directamente experimentado se ha convertido en una representación.”[11]
Didi-Huberman em seu livro “Imágenes pese a todo” analisa as famosas quatro fotografias feitas, possivelmente, de dentro de uma câmera de gás em Auschwitz, em agosto de 1944. Ele recebeu várias críticas por refletir tanto sobre estas imagens. Gérard  Wajcman, por exemplo, cita: “hay algo de insorpotable en lo que, en el fondo, no és más que una invitación al error, a la mentira y a la ilusión, al erro de pensamiento, a la mentira fácil y a la ilusión alienante.”[12]
Élisabeth Pagnoux, por sua vez, “no ve en el interés visual manifestado por las cuatro fotografías del Sonderkommando más que “voyeurismo” y “goce del horror”, “palabras inadecuadas” y “un fantasma perverso “obsesionado por el interior”, una “ficción” del pasado mezclada – a saber por qué – con “un presente humanitário”.[13]
O que dizer então sobre os três diretores dos documentários aqui trabalhados, que para representarem o que aconteceu na história, resolvem permitir que executores reconstituam seus crimes diante das câmeras? Faço minhas as palavras de Huberman: “la imagen no es una nada y, precisamente,  es dar muestras de radicalidad querer erradicar las imágenes de todo conocimiento histórico bajo el pretexto de que nunca son adecuadas (…) No hay más imágen única como tampoco habría palabra, frase o página únicas para expresar el todo de una realidad, sea cual sea.” [14]
Joshua Oppenheimer com “The act of killing” (2012), Rithy Panh com “S21: a máquina de matar do Khemer Vermelho” (2003) e Basílio Martín Patino com “Queridíssimos verdugos” (1977), cada um a sua maneira, eticamente, politicamente, estesticamente ou o que seja, contribuíram com a memória histórica mundial através dos seus documentários e nos proporcionaram uma rica experiência do cinema. 



[1] Weinrichter, A. (2004) Desvíos de lo real: el cine de no ficción. Madrid: T&B Editores, pág. 38
[2] Idem, pág. 37
[3] Didi- Huberman, G. (2004). Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto.  Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. pág. 27
[4] Lanzmann, C. citado em Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Georges Didi-Huberman (2004) Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. pág. 145
[5] Didi- Huberman, G. (2004). Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. pág.186
[6] Idem, pág.188
[7] Aumont, J. (et al.) (2012)  A estética do filme. Campinas, SP: Papirus, pág.20
[8] Didi- Huberman, G. (2004). Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. pág.17
[9] Benjamin W. (1936). La obra de arte en la época de su reproductibilidad técnica. Publicado en Benjamin, W. Discursos Interrumpidos I, Taurus, Buenos Aires, 1989
[10] Burgelin, O. (1974). La comunicación de masas. Barcelona: Editions Planete y A.T.E. pág. 25
[11] Debord, G. (1999) La sociedad del espectáculo. Valencia: Pre-textos, pág. 37
[12] Wajcman, G. citado em Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Georges Didi-Huberman (2004) Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. pág. 87
[13] Pagnoux, É. citado em Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Georges Didi-Huberman (2004) Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. pág. 88
[14] Didi- Huberman, G. (2004). Imágenes pese a todo: memoria visual del Holocausto. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, S.A. pág.181, 183